domingo, 11 de setembro de 2016

AS PALAVRAS E AS COISAS ; POR UMA ARQUEOLOGIA E GENEALOGIA DE NOSSAS VIDAS;











































































































































































Sujeito e linguagem em As palavras e as coisas, de Michel Foucault Everton Almeida Pereira∗ Resumo: A obra de Michel Foucault é rica por diversos aspectos e atestada por diversos filósofos e pensadores contemporâneos, como Gilles Deleuze, Jürgen Habermas, Jean Baudrillard, Maurice Blanchot etc. Sua obra é marcada pela minúcia de suas análises críticas, tanto no que se refere à análise do bio-poder, da sexualidade, da sociedade de controle, quanto por sua contribuição acerca da linguagem e das ciências humanas. Foucault sempre se manteve inclassificável, e isso se deu por conta da pluralidade dos temas abordados no interior da sua vasta obra. Porém, além dos temas elencados por Foucault, o tema da linguagem é central em seu pensamento, principalmente no que concerne a relação desta com o sujeito, como evidenciada na sua obra As Palavras e as coisas. E é esta relação entre o sujeito e a linguagem no interior d’as palavras e as coisas que será o objeto de reflexão no presente artigo, pois tal relação se apresenta como sendo o cerne no pensamento de Michel Foucault, para se compreender não somente o sujeito, como produto da modernidade, mas também problematizar o estatuto das ciências humanas, ou ciências do homem, uma vez instauradas por meio da linguagem e consequentemente por meio da relação entre esta e o sujeito. Palavras-chave: linguagem, sujeito, Michel Foucault Introdução Foucault figurou no cenário filosófico contemporâneo como um dos mais importantes intelectuais franceses do século XX, e isso se deu por sua vasta produção intelectual, que é composta por inúmeras obras que, relacionando diversas áreas do saber humano, como a filosofia, a história, a psicanálise, a medicina, o direito, abordam os mais variados temas, tais como a loucura, a sociedade de controle, a sexualidade, a linguagem, o poder etc. Foucault se apresentou de fato como um intelectual ligado ao seu tempo, engajou-se na luta contra a opressão penitenciária na França, e foi escritor e professor no Collège de France. Figura sempre requisitada no cenário intelectual, foi amigo de Paul Veyne, Jean Paul Sartre, Gilles Deleuze, entre outros. Foi admirado por aqueles que concordavam com suas ideias e até por aqueles que a elas não eram tão simpáticos, como Derrida, Marcel Gauchet e o americano Noam Chomsky. Debatedor, polêmico, Foucault ficou conhecido como um homem de ideias. Afetou sua contemporaneidade, não permitindo que os seus interlocutores ficassem indiferentes a elas. Teve como marca da sua experiência intelectual a busca pela clareza, pelos processos formadores da nossa sociedade e da nossa compreensão do homem e de tudo o que esta compreensão pôde engendrar. Foucault esteve sempre preocupado em elucidar a nossa origem, a origem dos nossos saberes, das nossas instituições e acima de tudo elucidar a origem do nosso saber sobre nós mesmos. É esse pensador extemporâneo, vivo no campo das ideias, que queremos ter como interlocutor, pois entendemos que o fazer filosófico é sempre um fazer dialógico (dialogal) que tem a força de mobilizar mortos e vivos em torno de inúmeras questões, fazendo com que aqueles que não existem mais tornem a existir num brevíssimo espaço de tempo. 1. O fazer filosófico como exercício de leitura Foucault, no prefácio de As palavras e as coisas, admite: Este livro nasceu de um texto de Borges. Do riso que, com sua leitura, perturba todas as familiaridades do pensamento – do nosso: daquele que tem nossa idade e nossa geografia –, abalando todas as superfícies ordenadas e todos os planos que tornam sensata para nós a profusão dos seres, fazendo vacilar e ∗ Universidade de São Paulo (USP). Endereço para correspondência: h eapfrance@yahoo.com.br i. Everton Almeida Pereira inquietando, por muito tempo, nossa prá- tica milenar do Mesmo e do Outro (Foucault, 2007, p. 1). Após a leitura deste pequeno extrato, Foucault nos comunica que o fazer filosófico é um exercício de leitura, sobretudo um exercício de confrontação textual que nos convida, como leitores, a defrontar-nos com os textos legados pelos filósofos ao longo da História da Filosofia, mas que requer de nós certa impostura diante deles para que possamos rir deles e rir com eles quando o riso for inesperado e necessário. Tal exercício filosófico nos propicia também descon- fiar da ordem das coisas, das suas vizinhanças, daquilo que está assente, do que é normativo; desconfiar das linhas de divisão que fazem com que algo seja tido como normal ou anormal, racional ou irracional, lógico ou ilógico. Foucault deixa claro, desde o início, que o que está em jogo é o estranhamento que perturba a nossa percepção do mundo, do mesmo e do outro, que provoca o riso por inverter a ordem familiar das coisas, é essa experiência de estranhamento que culmina no riso cara à Filosofia, pois ela é capaz de engendrar em nós a experiência de olhar o mundo com outros olhos, fazendo que em nós seja abalada a percepção do outro e do mesmo, e ao mesmo tempo a percepção que temos de nós. Será que essa experiência do estranhamento, não seria, por ínfima que seja, “um lampejo” do que é a experiência do louco quando ri do nosso mundo que, nós, normais, julgamos ordenado? Será que o riso é um sinal de que a razão comporta uma dimensão obscura, irracional? Ou talvez seja ele um sinal de que há diferentes modos de conceber e organizar o mundo e que quando esses diferentes modos se tocam tem-se essa irrupção inesperada do riso? Talvez. Uma coisa é certa, no caso de Foucault, o riso nasceu de uma leitura do texto de Borges, do exercício de se confrontar com o texto, de se permitir abalar, se inquietar, no exercício filosófico da leitura que tem a possibilidade de fazer vacilar as nossas convicções. 2. Sujeito e linguagem no interior de As palavras e as coisas. Inseridos também nesse exercício de leitura, devemos admitir que esse pequeno texto surgiu a partir das leituras dos textos de Michel Foucault, mais especificamente de As palavras e as coisas. Dentre as inúmeras questões suscitadas por Foucault ao longo da referida obra, há especificamente uma que consideramos ser a questão central a partir da qual se organiza toda a obra, a saber: “Que relação existe entre a linguagem e o ser do homem?” (Foucault, 2007, p. 468). Tal questão faz com que Foucault perscrute, na história da filosofia, autores que lhe são caros, como Condillac, Kant, Adam Smith, Nietzsche, entre outros. Podemos afirmar, então, que Foucault, ao se debruçar sobre a obra desses autores, empreende um projeto com a finalidade de investigar a relação existente entre linguagem e sujeito, entre ontologia e linguagem, entre as palavras e as coisas. Para que seja possível dizer algo sobre tais relações, Foucault será levado a investigar minuciosamente, como que procedendo a um corte transversal na história, o que foi a linguagem e o seu “desenvolvimento”, as suas implicações e contribuições para as diversas áreas do saber humano (as Ciências Humanas) e concomitantemente a operar com noções como a de “vida” e “ser humano” (este entendido como sujeito empírico-transcendental), para, enfim, verificar como o “desenvolvimento” da linguagem foi tributário de uma noção de sujeito própria da modernidade. Dessa forma, podemos dizer, a princípio, que a no- ção de sujeito-empírico foi processualmente forjada na sombra do desenvolvimento da linguagem. Ou, ainda, que a questão da linguagem tem como substrato a questão ontológica e vice-versa. E é justamente nesse momento que podemos perceber que essa questão tem como fundamento uma noção de sujeito bem particular, que compreende esse sujeito como tendo sido forjado pela(s) estrutura(s) que possibilita(m) as condi- ções, as leis, as normas que regem e tornam possível o desenvolvimento da linguagem, o conhecimento do mundo empírico e, por consequência, o conhecimento de si. As palavras e as coisas é não somente uma obra acerca da linguagem e do sujeito, mas, ao mesmo tempo, uma obra acerca das condições que permitiram que esse sujeito e essa linguagem surgissem no limiar da modernidade. Portanto, diante de nós, desvela-se a obra de Foucault, que mobiliza no seu interior a tentativa de compreender o fenômeno humano, bem como sua relação com o mundo por meio da linguagem, mas, para além do próprio sujeito e para além da própria linguagem, visa a elucidar também quais foram as condições necessárias ao seu aparecimento. Assim, colocamo-nos determinadamente no cerne do projeto foucaultiano, que é o de caracterizar a episteme que operou os conceitos e as noções (conhecimentos) que permitiram, no auge da modernidade, o aparecimento desse recente sujeito do conhecimento. O nosso intento é, de fato, compreender melhor essa relação no interior de As palavras e as coisas, por entendermos que ela, dentre outras obras de fôlego do autor, constitui-se evidentemente como um importante legado da história da filosofia – obra central para o debate filosófico contemporâneo, que colocou questões pontuais para a filosofia francesa contemporânea, mas também por pensarmos que ela lança um olhar crítico sobre o próprio estatuto das ciências humanas. Ao seguir pelas vias que parecem ter motivado Foucault a investigar o recôndito da nossa modernidade, encontraremos elementos para problematizar e compreender melhor o que vem a ser esse sujeito, o que o 95 estudos semióticos, vol. 7, no 2 fez nascer, o que lhe é dado a conhecer e quais são os meios disponíveis, os instrumentos à sua disposição que lhe permitem conhecer o mundo e se relacionar com ele e, consequentemente, conhecer a si mesmo. Ou seja, faz-se necessário problematizar essas duas noções, a de sujeito e a da linguagem, e saber como elas se relacionam. Para tanto, um procedimento a ser feito é o de realizar um corte e nos ater ao período moderno para que possamos perceber como Foucault compreende o surgimento desse sujeito recente e como é engendrada a questão da linguagem, pois ao que tudo indica é com os olhos voltados para esse período que Foucault intui o nascimento desse novo sujeito. 3. A noção de “sujeito” em As palavras e as coisas Patrice Maniglier, a partir do seu texto “A aventura estruturalista”, descreve a atmosfera intelectual francesa quando da publicação de As palavras e as coisas: Michel Foucault, em As palavras e as coisas (1966), tinha acabado de fazer do estruturalismo a nova filosofia parisiense, que deveria obscurecer o existencialismo: essa filosofia afirmava que o sujeito não é aquilo que dá sentido ao universo (pela angústia de sua liberdade); o sujeito apenas se limita a realizar possibilidades já inscritas em códigos tão inconscientes quanto as regras gramaticais (2009, p. 9). Eis o dado e a data. A data 1966, ano da publicação de As palavras e as coisas, livro fundamental para o debate filosófico contemporâneo. O dado – como bem salientou Maniglier –, a noção de sujeito que engendrou uma nova concepção de sujeito no cenário filosófico, bem diferente do sujeito existencialista, que era o criador de sentido e que se valia da sua liberdade angustiante frente ao mundo para dar significado a si, ao mundo, às coisas (objetos) e, enfim, a toda a sua existência nadificante. Esse sujeito, de fato, não é o sujeito que o programa estruturalista pensou, nem tampouco o sujeito foucaultiano se assim podemos dizer. Em contraposição ao existencialismo, que pensa o sujeito a partir da sua produtora angústia frente ao nada da existência, o estruturalismo pensará esse sujeito sob a matriz da estrutura, ou seja, pensará o sujeito a partir daquilo que o precede, e que o constitui levando em consideração as condições necessárias ao conhecimento. Esse é um dado deveras caro ao estruturalismo; é o que marca não só a distinção entre o programa estruturalista e o existencialismo, mas é, principalmente, o dado segundo o qual se pode falar do sujeito a partir do projeto estruturalista, sobretudo em As palavras e as coisas. Como Maniglier explicita: “O sujeito apenas se limita a realizar possibilidades já inscritas em códigos tão inconscientes quanto as regras gramaticais” (2009, p. 9). Regras gramaticais, jogo de xadrez, essas são algumas imagens mobilizadas pelo estruturalismo para caracterizar esta relação controversa entre o sujeito e a estrutura por meio das normas, das regras e do jogo. De modo que esse sujeito, quase dissolvido pela sua função reprodutora e consequentemente pela estrutura, foi o que marcou definitivamente a diferença entre o existencialismo e o estruturalismo, as duas mais importantes correntes filosóficas do século XX. Nas palavras do próprio Foucault podemos ler: Dir-se-á, pois, que há ciência humana, não onde quer que o homem esteja em questão, mas onde quer que se analisem, na dimensão própria do inconsciente, normas, regras, conjuntos significantes que desvelam à consciência as condições de suas formas e de seus conteúdos (2007, p. 505). Ou seja, para Foucault era evidente que só se podia falar do homem a partir daquilo que o constitui e, portanto, o precede, ou seja, a partir da estrutura, a partir das condições de possibilidade do conhecimento. Desse modo, para se pensar o sujeito a partir do projeto estruturalista e, sobretudo, a partir de As palavras e as coisas, faz-se necessário pensar, problematizar o que vêm a ser tais condições de possibilidade do conhecimento e o que estas condições engendram, como, por exemplo, a linguagem, pois ambas, a noção de sujeito e a da linguagem, estão implicitamente ligadas e por sua vez concatenadas sob a égide da estrutura. E é justamente em virtude desta hermética concatenação que se faz necessário elucidar o que vem a ser a noção de sujeito e consequentemente quais foram as condições de possibilidade que proporcionaram o seu surgimento no seio da modernidade como quer o projeto estruturalista e, sobretudo, a referida obra ora em questão. Para que possamos pensar esse novo sujeito de conhecimento, no interior de As palavras e as coisas, faz-se necessária a referência a Kant. É evidente que essa nova concepção de sujeito, tal como podemos encontrar em As palavras e as coisas só foi possível para Foucault a partir da sua experiência de leitor dos textos kantianos. É em Kant que Foucault encontrará o dado caro à filosofia moderna e, por sua vez, caro a sua concepção de sujeito, a saber, a analítica da finitude. É somente a partir desse legado kantiano que será possível para Foucault pensar o sujeito moderno, como sujeito de conhecimento, histórico, datado, que traz em si a possibilidade do conhecimento e, concomitantemente, a do seu desaparecimento enquanto sujeito empírico. 96 Everton Almeida Pereira As acusações direcionadas a Foucault e a sua obra insurgem-se efetivamente sobre essa nova noção de sujeito, sujeito como sendo estruturado pela estrutura, aquém dos processos geradores do conhecimento, sujeito esse regido por códigos estruturantes. Dir-se-á que se trata de um projeto anti-humanista que tende a descentralizar a noção de sujeito como geradora de sentido e conhecimento por uma noção antinômica, ou seja, a noção de sujeito gerado e regido pela estrutura, sujeito inconsciente. Esta crítica soma-se à ideia foucaultiana de que esse sujeito, tal como nós conhecemos, é datado, ou melhor, é recente e tem um fim próximo: “Pode-se estar seguro de que o homem é aí uma invenção recente” (Foucault, 2007, p. 536). E ainda: “[...] pode-se apostar que o homem se desvaneceria, como, na orla do mar, um rosto na areia” (Foucault, 2007 p. 536). Ou seja, por mais clara que seja a opção de Foucault, mais controversa ela se nos apresenta; é como se para falar do nosso objeto fosse antes necessário destruí-lo, reduzi-lo. É justamente esse impasse que é preciso salientar, ou seja, como é possível falar do sujeito a partir daquilo que o precede, ou seja, da estrutura e consequentemente da linguagem? Não correremos o risco de tratarmos de outro objeto que não seja o sujeito? Ou então: a estrutura não seria ela uma dimensão ainda desconhecida do homem? Não seria ela um outro nome para este sujeito, um outro nome e uma outra face do homem, tal qual a noção controversa do inconsciente? 4. A noção de linguagem em As palavras e as coisas Acresce-se à problemática em torno do sujeito no interior de As palavras e as coisas o problema concernente à linguagem. Em grande parte dessa obra, Foucault se debruça sobre a questão da linguagem. Cabe-nos, então, perguntar por que Foucault despende tanto tempo com ela? De fato, para Foucault a linguagem é central e constituinte das ciências humanas; para ele, elas também são linguagens. São linguagens por serem e comunicarem representações acerca do homem, tal como a economia, a biologia, a psicologia, a sociologia etc. Ou seja, as questões em As palavras e as coisas não estão de modo algum desconexas, muito pelo contrário, elas se completam num jogo de substituições e esquivas em que todas são regidas pela estrutura. O que de fato se descortina para nós em relação à linguagem é não somente perguntar o que é a linguagem enquanto formadora das ciências do homem, mas perguntar como de fato a linguagem se voltou para este homem, para este ser finito. Nesse sentido, ao que tudo indica, a linguagem operou no que tange ao homem, um movimento reflexivo no qual o próprio homem foi posto diante de si, como aquele que vislumbra o seu rosto no espelho. É nesse sentido que a linguagem parece reveladora desse homem moderno que passa a vislumbrar, por meio da linguagem, a sua própria finitude e aquilo que lhe está dado a conhecer. Por outro lado, Foucault dirá no tocante ao ser da linguagem e ao ser do homem: Mas pode ser também que esteja para sempre excluído o direito de pensar ao mesmo tempo o ser da linguagem e o ser do homem; pode ser que haja aí como que uma indelével abertura de tal forma que seria preciso rejeitar como quimera toda a antropologia que pretendesse tratar do ser da linguagem, toda concepção da linguagem ou da significação que quisesse alcançar, manifestar e liberar o ser próprio do homem (Foucault, 2007, p. 468). E novamente nos vemos às voltas com Foucault. É inegável que há uma relação intrínseca entre a linguagem e o sujeito. É através da linguagem que é possível ao homem conhecer o mundo e a si, representar o seu pensamento, ter ciência da sua condição, da sua finitude. É esta relação entre o sujeito e a linguagem que revelou que este homem em questão é em toda a sua empiria finito e que, por sua vez, o seu conhecimento é também limitado, o que já denota de antemão certa concepção antropológica como quer, por exemplo, a analítica da finitude. A linguagem é o único meio disponível para se chegar a certo conhecimento do homem, enquanto sujeito, e do mundo, enquanto fenômeno, pois o que há entre as palavras e as coisas? Há a linguagem. E é ela que é enunciada por este sujeito que é ao mesmo tempo seu enunciador e enunciado. É ela, a linguagem, que permite ao homem a ordenação e a representação do pensamento, portanto é impossível falar do homem sem falar antes da linguagem, pois não é o homem que pensa a linguagem, é a linguagem que pensa o homem, é ela que diz o sujeito, pois sem ela todo o acesso ao mundo estaria fadado à incomunicabilidade do universo fechado e desconhecido. Ou como bem caracterizou o professor José Luiz Fiorin: “Na medida em que o homem é suporte de formações discursivas, não fala, mas é falado por um discurso” (Fiorin, 2002, p. 44). Dessa forma, para se conhecer esse homem, sujeito recente, é antes necessário debruçar-se sobre as malhas da linguagem. É ela o principal instrumento para pensar o homem. “É no nível do discurso que devemos, pois, estudar as coerções sociais que determinam a linguagem” (Fiorin, 2002, p. 16). E a esta ideia poderíamos acrescentar que os homens, uma vez determinados pelas coerções sociais, são moldados tal qual a linguagem de que eles fazem uso para construir imagens de si e da comunidade linguística à qual pertencem. Qual é a idade do homem? A idade da sua 97 estudos semióticos, vol. 7, no 2 língua. A língua é o rastro, ou se quisermos o registro mais antigo da sua atividade. Assim, para conhecer este sujeito, este formador e comedor de palavras, não é somente necessário o conhecimento da sua anatomia, das suas funções cerebrais, ou conhecer como funciona o olho humano, por exemplo, a retina, as células fotossensíveis que ali estão, ou antes, os seus hábitos sociais, mas, sobretudo, faz-se necessário o conhecimento da sua linguagem, do seu modus operandi, o seu manuseio dela, pois é justamente nela que é possível verificar a sua visão do mundo, como o mundo foi organizado por ele e consequentemente saber das miríades de comunidades linguísticas que o gênero humano foi capaz de formar e adentrar ao longo da sua aventura. Com toda a certeza, Foucault vislumbrou essa no- ção, a de que para falar do homem é necessário antes e sobretudo se debruçar sobre a linguagem. É nela que ele inverteu a pesquisa acerca do homem, a pretensa ilusão de que o homem precede a tudo, de que ele, de posse da sua liberdade, cria línguas e linguagens para tornar comunicável o mundo. Pois, como Lineu no campo da botânica pôde empreender o seu sistema senão por meio da linguagem? Como Adam Smith pôde lançar os pilares da análise da riqueza a não ser por meio dela? Foi dessa maneira que Foucault percebeu, ao longo de As palavras e as coisas, que o homem não só tem a idade da sua língua, como é formado por ela, inserindo-nos numa espiral sem fim na qual falar do homem é falar da linguagem e, por sua vez, falar sobre a linguagem é falar de comunidades linguísticas existentes ou desaparecidas e, portanto, vemo-nos novamente falando do homem, ou melhor, desse sujeito complexo. Assim, além de filósofo, historiador, ou teórico das práticas sociais, Foucault se mostrou capaz de analisar e dar a devida importância que a temática em questão exige, ou seja, para ele, a própria linguagem poderia ter sido encarada como uma prática social que, por vezes, é datada tal qual o homem, mas, sobretudo, tem em si a potência de se renovar a cada instante, construindo representações do mundo, do homem, traduzindo os pensamentos, estando em todos os lugares, sendo a rede na qual se tramam os discursos, pois o mundo é linguagem, e o próprio mundo e o homem são tornados sujeitos por meio dela, a partir da sua função sempre nova e renovada. Devemos ressaltar que As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas (1966) faz parte do período arqueológico de Foucault e que este período é marcado por outras obras importantes como: O nascimento da clinica. (1963) e Arqueologia do saber, (1969), ou seja, o período arqueológico caracteriza até o início dos anos 1970 o método de pesquisa de Foucault. De posse dessa informação e da constatação de que as obras do autor nesse período carregam até em seus títulos a marca da sua preocupação, como podemos ver nas referências em cada um deles ao termo arqueologia, podemos perguntar: o que vem a ser esse termo e qual é a sua característica? Judith Revel, comentando esse período específico da produção intelectual de Foucault, diz: Ora, a arqueologia não é uma história no sentido estrito na medida em que trata de reconstituir bem um campo histórico, Foucault, na realidade, mobiliza diferentes dimensões (fi- losófica, economica, científica, política etc) a fim de obter as condições de emergência dos discursos do saber geral de uma época dada (Revel, 2010, p. 79) [tradução nossa]. Assim, esse período revela sobretudo que Foucault se debruçou sobre as ciências humanas com a finalidade de caracterizar uma arqueologia geral. Ele tinha por ambição evidenciar o que era comum nas diferentes ciências humanas; não estava em questão simplesmente reconstituir dados históricos, ou cronológicos. Não se tratava de fazer uma história das ciências humanas, mas, ao contrário disso, adentrar cada uma delas e saber os seus interstícios, para, enfim, obter o elemento de ligação entre elas e, consequentemente, desvelar o saber característico, o saber geral de uma época, a sua episteme. Para tanto, Foucault, por meio do seu método arqueológico, não só realizou um corte transversal nas ciências do homem, mas, além disso, uma sutura, na qual, em relevo, a linguagem sobressai. Sobre este modo característico de proceder, sobre o seu método arqueológico, Judith Revel nos diz: Esta articulação é, evidentemente, inteiramente histórica: ela possui uma data de nascimento – e toda a sua aposta consiste em considerar igualmente a possibilidade do seu desaparecimento (Revel, 2010, p 80) [tradu- ção nossa]. Então, mediante a observação de Revel acerca do método sutural de Foucault, o método arqueológico, de que ele é inteiramente histórico e possui uma data de nascimento no interior do seu próprio pensamento, fica clara a guinada dada por Foucault a partir da década de 1970 e perceptível já a partir da sua aula inaugural no Collège de France, a saber, A ordem do discurso, na qual é evidente que a sua preocupação primeira é o discurso e a relação deste com o poder, ou seja, Foucault adentra profundamente a reflexão do discurso como prática social perpassada pela relação reguladora do poder e, consequentemente, suas instituições, e não mais sobre as relações estruturantes das ciências humanas. Nesse período de transição no pensamento foucaultiano, marcado por sua obra A ordem do discurso 98 Everton Almeida Pereira (1971), Foucault faz uma declaração interessante e ao mesmo tempo reveladora da intermitência do seu período anterior, período arqueológico, na sua experi- ência intelectual ao dizer: Começo não haveria; e no lugar de ser aquele do qual vem o discurso, eu seria antes, ao acaso do seu desdobramento, uma estreita lacuna, o ponto do seu desaparecimento possível (Foucault, 2007, p. 8) [tradução nossa]. Ou seja, não se trata mais de uma arqueologia das ciências humanas, tal como em As palavras e as coisas e sim, como já mencionado acima, do discurso, porém ambas preocupações são regidas pelo signo do desaparecimento. Desaparecimento possível do autor, desaparecimento possível do homem, desaparecimento possível de um método, ou de uma aproximação metodológica e, enfim, desaparecimento possível das ciências humanas. Essa égide se deu pelo fato de que Foucault considerava todo o conhecimento finito, aproximado e, acima de tudo, datado. Como se o novo já nascesse velho, fadado a desaparecer, limitado ao instante da sua existência. Assim como o discurso é regulado por práticas de poder sempre novas, o mesmo se dá com as aproximações metodológicas. Novos dispositivos, novas tecnologias exigem novos métodos de análise e aproximação. E neste sentido mesmo o novo e o reiterado são por elas instaurados. Nada é fixo no pensamento de Foucault. O seu sujeito não é o criador de sentidos. Mas antes é criado por códigos estruturantes e inconscientes que moldarão sujeitos a cada época. As ciências não estão separadas umas das outras, antes possuem e comunicam uma mesma arché. Neste sentido, a partir desse viés arqueológico das ciências e da linguagem engendrado por Foucault, fica clara a afirmação de Fiorin acerca da linguagem: A linguagem é um fenômeno extremamente complexo, que pode ser estudado de múltiplos pontos de vista, pois pertence a diferentes domínios. É ao mesmo tempo, individual e social, física, fisiológica e psíquica. Por isso, dizer que a linguagem sofre determinações sociais e também goza de uma certa autonomia em relação às formações sociais não é uma contradição (Fiorin, 2002, p. 8). Portanto, a partir deste momento tão especial, período de descoberta de uma arqueologia estruturante, a pesquisa acerca da linguagem ultrapassou tópos consagrados, como a linguística, a filosofia, o estudo da gramática e a sua história e até mesmo a análise do discurso. Assim foi ressaltada a importância da linguagem, reintroduzida, por sua vez, como preocupa- ção fundamental no seio do programa estruturalista. Ou seja, a linguagem como fenômeno complexo ultrapassa as diferenças e as barreiras entre as ciências do homem. Ela é este objeto de difícil apreensão, ela tudo permeia, não sendo objeto privilegiado de uma única ciência, ao contrário disso, todas as ciências podem fazer e fazem uso dela. Nesse sentido falar da linguagem a partir de As palavras e as coisas é ter ciência de que se adentra não somente um terreno árduo, de análise cerrada, mas, além disso, é ter a sensação de adentrar um terreno movediço, ou um terreno onde tudo flui. Determinar o que vem a ser a linguagem é deveras difícil por conta da sua infinita abrangência, e esta infinita capacidade de tudo abarcar pode ser tida como a sua primeira característica. Roman Jakobson nos transmite a mesma ideia no seu esforço de determinar o que vem a ser a linguagem: “A linguagem é realmente a própria fundação da cultura. Em relação à linguagem, todos os outros sistemas de símbolos são acessórios ou derivados. O instrumento principal da comunicação portadora de informação é a linguagem” (Jakobson, 2003, p. 28) [tradução nossa]. Ou seja, a linguagem é tão abrangente que incorpora todos os outros sistemas de símbolos, ela abarca todos como bem salientou Jakobson, nela está contida a fundação mesma da cultura e é justamente por este fato que as palavras nunca dão conta de contê-la, de determiná-la completamente, pois ela, a linguagem, excede todas. É como se, para de fato conhecer o que é o caminho, fosse necessário caminhar ou se, para de fato conhecer o que é o mar, fosse necessário ser envolvido por ele. Ou seja, a linguagem contém tudo ao conter todas as coisas e nada a encerra. Entre as palavras e as coisas, neste espaço aparentemente vazio, existe a linguagem. No limite ela é o elemento que satura todos os elementos e que os engendra por meio do seu caráter multifacetário, e sem ela nenhum conhecimento talvez fosse possível e toda a comunicação jamais existiria. Podemos dizer, desse modo, que a linguagem é a sutura por excelência que liga todas as coisas e que é por meio dela que as ciências humanas são conectadas. É também por meio dela que os homens são ligados às práticas sociais do discurso, do poder, da sexualidade, do cerceamento e das proibições. Mas, enfim, o que este termo sutura significa? O que quer dizer? Herman Parret, no seu livro Sutures sémiotiques, recupera esse termo de áreas que aparentemente nada teriam a acrescentar à discussão acerca da linguagem, como, por exemplo, a botânica. Conhecemos evidentemente o sentido do termo sutura em cirurgia, um pouco menos o seu emprego na botâncica. Uma sutura, em botânica, nos ensina o dicionário da língua francesa, é o nome dado às linhas geralmente pouco salientes que indicam os pontos onde 99 estudos semióticos, vol. 7, no 2 as rupturas aconteceram (Parret, 2006, p. 7) [tradução nossa]. Ou seja, sutura é a junção de partes na qual é visível a saliência que as une. Como já vimos, ao que tudo indica, é a linguagem que cumpre adequadamente esse papel. No limite, não há a linguagem e, sim, a sua prática de tudo ligar, concatenar, unir. A linguagem é, no limite, a atividade que tudo liga. Nesse mesmo exemplo de Parret sobre o termo sutura, podemos ver como a linguagem é intercambiável e transita livremente enviesando as mais diversas práticas sociais, perpassando para tanto as mais diversas esferas do campo social e sendo por elas determinada, ao mesmo tempo em que é determinante na construção do conhecimento. Um mesmo termo, até então utilizado numa ciência com um campo semântico bem definido, pode ser utilizado conferindo sentido numa outra esfera do conhecimento, como, por exemplo, na semiótica, sem uma clara defasagem de sentido. A função sutural da linguagem seria, então, a de sempre criar sentidos, possibilitando dessa forma a comunicação do conhecimento? Assim temos que a linguagem é acima de tudo uma função. Podemos dizer que essa função, ou se quisermos, essa atividade percebida por Foucault possibilita não somente a representação do pensamento, mas possibilita a comunicação dos conhecimentos humanos. Foi somente ao transcorrer as ciências humanas que Foucault pôde perceber, e isto privilegiadamente em As palavras e as coisas, o que ligava e colocava as ciências humanas em relação. Por mais distintas que elas se apresentavam, todas deixavam o rastro que as uniam, ou seja, a sua relação sempre tributária do uso da linguagem. Como mostrado, isso só foi possível por meio do processo arqueológico no qual as palavras e as coisas são parte essencial. Não é sem propósito que Foucault começa a sua obra ora em questão com a análise do quadro “As meninas”, de Velásquez. É como se esse primeiro capítulo já contivesse ou fosse um resumo do que viria ao longo das páginas seguintes. Uma representação da representação. Um duplo. E o que é a linguagem, senão esta função de tudo representar? Este olho que não se cansa de ver? Representações serão sempre datadas. Carregam sempre a marca da sua indelével contemporaneidade. Nada mais são que registros. E nesse infindável processo de tudo representar, cabe tudo, as ciências, as divagações, tudo que se pode nomear, pois por detrás da linguagem, da sua função, está como disse Jakobson o fundamento da cultura. Portanto, vê-se o quão hermeticamente concatenados estão, no pensamento de Foucault, o sujeito e a linguagem, essa indissociável relação é perceptível na leitura da obra em questão. Mas podemos dizer que, para além do homem, o que está em questão é a nossa recente cultura de tudo centrar no homem, e é justamente isso que está em questão, essa história da cultura, do nosso olhar sobre as coisas, essa história do mesmo. Trata-se de fazer uma crítica do nosso modo de ver e organizar o mundo, de ter a ciência de onde vieram e de como foram forjados os nossos conhecimentos acerca de tudo o que nos rodeia. Trata-se ao mesmo tempo de uma experiência de estranhamento que engendra o riso. Riso, que é signo do desarranjo, do outro, que nos interpela. No fundo, o que está em questão é o peso da nossa presença, da nossa marca, pois o que é ser finito senão experimentar esse peso? É inegável que a obra As palavras e as coisas trata de um mergulho nas ciências humanas empreendido pelo seu autor. E é justamente por isso que ela está impregnada do peso moderno que recai sobre nós, uma vez que trata essencialmente do nascimento do homem enquanto sujeito do conhecimento. Trata-se essencialmente de uma dialética do mesmo e do outro, experiência fundadora da cultura moderna, experiência do conhecimento que exige, para ser instaurado, diferentes modos de organização. Diferentes modos de se pôr no mundo, de organizar o mundo. As palavras e as coisas evidencia que a modernidade teve início a partir de uma profusão no modo de representar o mundo e tudo o que ele encerra. Portanto, é exatamente por isso que Foucault despendeu tanto tempo na pesquisa desse período, pois ele tinha a ciência que fora dele é que foi possível forjar o nosso conhecimento acerca do homem e das ciências que o constituem. Esperamos que, com estas econômicas palavras, tenhamos tido o êxito de evidenciar a relação existente entre o sujeito e a linguagem e contribuir minimamente com a pesquisa acerca não somente da experiência intelectual de Michel Foucault, da sua importância para a filosofia contemporânea, mas, sobretudo, esperamos ter contribuído no que este pensamento foi capaz de fazer avançar a pesquisa nas humanidades, tais como a filosofia, a história, a semiótica, a psicanálise, pois sabemos que de uma maneira ou de outra essas ciências foram marcadas pelo pensamento de Michel Foucault, principalmente no que tange a relação dessas ciências com a linguagem. Referências Fiorin, José Luiz 2002. Linguagem e ideologia. São Paulo: Ática. Foucault, Michel 1966. Les mots et les choses: Une archéologie des sciences humaines. Paris: Éditions Gallimard. Foucault, Michel 1971. L’ordre du discours: Leçon inaugurale au Collège de France prononcée le 2 de decembre 1970. Paris: Éditions Gallimard. 100 Everton Almeida Pereira Foucault, Michel 2007. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes. Jakobson, Roman 2003. Essais de linguistique general. 1. Les fondations du langage. Paris: Les Éditions de Minuit. Maniglier, Patrice 2009. A aventura estruturalista. Revista de Antropologia estrutural dos alunos do PPGA-USFCAR, v.1, n.1, p. 9–15. Parret, Herman 2006. Sutures sémiotiques. Limoges: Editions Lambert-Lucas. Revel, Judith 2010. Foucault, une pensée du discontinu. Paris: Mille et une nuits. Dados para indexação em língua estrangeira Pereira, Everton Almeida Sujet et langage dans Les mots et les choses, de Michel Foucault Estudos Semióticos, vol. 7, n. 2 (2011), p. 94-101 issn 1980-4016 Résumé: Riche à bien des égards, l’œuvre de Michel Foucault marque la réflexion de plusieurs philosophes et penseurs contemporains, tels quels Gilles Deleuze, Jürgen Habermas, Jean Baudrillard, Maurice Blanchot etc. Elle se fait remarquer par la minutie de ses analyses critiques portant tour à tour sur l’analyse du bio-pouvoir, de la sexualité, de la société du contrôle, de même que par son apport aux études du langage et des sciences humaines. Foucault est toujours demeuré inclassable, vu la pluralité des thèmes touchés par son œuvre foisonnante. Une telle diversité ne devrait pourtant pas cacher la place centrale occupée dans sa pensée par le thème du langage et particulièrement dans les rapports de celui-ci avec le sujet, dont témoigne l’ouvrage Les mots et les choses. C’est cette relation entre le sujet et le langage au sein des mots et des choses qui fera l’objet des réflexions du présent article, cette relation se retrouvant au cœur de la pensée de Michel Foucault non seulement lorsqu’il s’agit de mieux comprendre le sujet en tant que produit de la modernité mais, au-delà, pour mettre en cause le statut des sciences humaines ou sciences de l’homme, établies par l’intermédiaire du langage et, par voie de conséquence, par le rapport admis entre celui-ci et le sujet. Mots-clés: langage, sujet, Michel Foucault Como citar este artigo Pereira, Everton Almeida. Sujeito e linguagem em As palavras e as coisas, de Michel Foucault. Estudos Semióticos. [on-line] Disponível em: h http://www.fflch.usp.br/dl/semiotica/es i. Editores Responsáveis: Francisco E. S. Merçon e Mariana Luz P. de Barros. Volume 7, Número 2, São Paulo, novembro de 2011, p. 94–101. Acesso em “dia/mês/ano”. Data de recebimento do artigo: 15/12/2010 Data de sua aprovação: 16/02/2011

Lucas Roahny - PET/Ciências Sociais (UFPR) RESENHA: FOUCAULT, M. (2007 [1966]) As Palavras e as Coisas: uma Arqueologia das Ciências Humanas. São Paulo: Martins Fontes. “Anthropology is a kind of philosophy too, but it is not so exclusive. There are, of course, as many definitions of anthropology as there are anthropologists, but my own is as follows: Anthropology is philosophy with the people in.” Tim Ingold Se fosse possível elaborar uma lista dos principais trabalhos que marcaram o campo das humanidades no último século – mas a profusão de tentativas que chegam a resultados completamente distintos está aí para provar que, nesses casos, o exercício é sempre vão –, poucas obras teriam direito ao destaque que o livro As Palavras e as Coisas1 alcançou desde sua publicação no ano de 1966. Polêmico desde as primeiras páginas que figuram em seu prefácio, a novidade desta obra dificilmente definível de Michel Foucault – epistemologia, história do conhecimento ou filosofia? – reside em sua capacidade de colocar em xeque o “homem” em um momento no qual este, aparentemente, reinava absoluto. Entendido enquanto uma “imagem do pensamento” – como bem o disse Gilles Deleuze (1966) – capaz de articular todo o saber moderno, o homem é denunciado por Foucault como “uma invenção recente, uma figura que não tem dois séculos, uma simples dobra de nosso saber” (PC, xxi) em um contexto no qual esta mesma imagem dominava todo o espaço de reflexão filosófica na academia francesa. O diagnóstico presente em PC sobre a filosofia de sua época é claro e preciso: do marxismo (J.-P. Sartre) à fenomenologia (M. Merleau-Ponty) tratar-se-ia menos de posições filosóficas radicalmente distintas do que de formulações particulares que visavam responder à questão do ser do homem, questão essa que “percorre o pensamento desde o começo do século XIX” (PC, 471). É visando atingir esse status quo da reflexão filosófica contemporânea que Foucault formula a severa tese de que o homem, esta nova figura do pensamento ocidental, já “está em via de desaparecer” (PC, 534). Ora, o que acontece àqueles (não só marxistas ou fenomenólogos, mas também psicólogos, sociólogos e filósofos das mais distintas correntes) que “não querem pensar sem imediatamente pensar que é o homem quem pensa” (PC, 473), àqueles enfim, para os quais “antropologizar” é uma regra, quando confrontados com esta historicidade (recente e já crepuscular) do próprio homem? É a eles, com efeito, que a crítica foucaultiana se endereça; PC tem como horizonte o desmascaramento de um falso problema filosófico – o do homem. Trata-se, portanto, de uma monografia filosófica que é, simultaneamente, um manifesto contra o “sono antropológico” (PC, 470-3) que embala o pensamento moderno desde a transição pela qual os saberes passaram na curva dos séculos XVIII e XIX. Qual foi a natureza desta “transição” que ocorrera na esfera do conhecimento? Em primeiro lugar, e antes de discuti-la com propriedade, impõe-se sublinhar sua posição na economia do argumento de Foucault: a identificação de um ponto no qual seria possível inscrever o aparecimento do homem no espaço do saber é um ganho evidente do “método arqueológico” desenvolvido em PC; tal método objetiva a evidenciação das “configurações que 1 PC daqui em diante. deram lugar às formas diversas do conhecimento empírico” (PC, xix). Assim, a arqueologia foucaultiana não é uma maneira de perscrutar diacronicamente a progressão do conhecimento, mas antes um tipo de investigação que se preocupa em escavar o solo que deu origem a certos tipos de saberes e que os sustentou enquanto estes existiram. A diacronia das formas de conhecimento tem sua origem nas “condições de possibilidade” (Ibid.) e no “a priori histórico” (PC, xviii) que se mostram como os únicos e verdadeiros objetos de uma arqueologia do saber tal como Foucault a elabora – a história, as causalidades que põem em movimento o saber em certo período não lhe interessam, mas sim a “imagem do pensamento” da qual todo devir socio-histórico concreto é devedor. Para Foucault, “é preciso conceber acontecimentos do pensamento puro, acontecimentos radicais ou transcendentais que determinam em tal época um espaço de saber” (Deleuze, 1966: 6). É nesse sentido que deve ser compreendida a “transição” de que falei anteriormente, a qual demarcaria o momento de “nascença” do homem no campo do conhecimento. O que ocorrera, no limiar do século XIX, foi exatamente uma ruptura na episteme da época, uma radical mudança no “a priori histórico” que comandara os saberes naquilo que Foucault chamou de “idade clássica” (séculos XVII e XVIII) e cujo princípio epistemológico unificador consistia na figura da representação. O esgotamento do domínio representacional como o liame natural entre o ser das coisas e o conhecimento que delas temos (PC, 330), fenômeno que é datado por Foucault como pertencente ao final do século XVIII, implicou numa reorganização do espaço do saber ocidental – impunha-se, enfim, a criação de uma nova “imagem do pensamento” capaz de ocupar este local antes reservado à representação. De fato, na mesma medida em que mudava radicalmente a “relação da representação para com o que nela é dado” (PC, 328), não sendo mais possível conceber o ser das coisas como coextensivo à representação que delas formamos, processava-se também uma profunda reconfiguração do saber na qual a autorreferência do campo representacional era abandonada em prol de uma investigação que tinha como base os limites externos à própria representação. Nesse registro, novas figuras passam a povoar a configuração epistêmica da época: “[...] o que, no horizonte de todas as representações atuais, se indica por si mesmo como o fundamento da unidade delas são esses objetos jamais objetiváveis, essas representações jamais inteiramente representáveis, essas visibilidades ao mesmo tempo manifestas e invisíveis, essas realidades que estão em recuo na medida mesma em que são fundadoras daquilo que se oferece e se adianta até nós: a potência de trabalho, a força da vida, o poder de falar.” (PC, 335-6) É assim que, no limiar do século XIX, dá-se o momento de instauração de uma reflexão de cunho transcendental na qual aquilo que permite o conhecimento é, ao mesmo tempo, o que sempre lhe escapa. O trabalho, a vida e a linguagem, categorias transcendentais que aparecem como espécies de “a priori históricos” da idade moderna, são atravessadas por um paradoxo: “em seu ser, estão fora do conhecimento, mas são, por isso mesmo, condições de conhecimentos” (PC, 336). Aqui logo se abrirá o perigoso horizonte antropológico de nossa modernidade, sulcado pelas ciências e filosofias que transpõem os conteúdos da experiência para o campo transcendental (PC, 342). Mas isso não é tudo. Se há, enfim, um acontecimento fundamental à emergência do saber moderno, ele é menos a cristalização dos domínios da vida, do trabalho e da linguagem como dimensões transcendentais do que a substituição da representação pela figura do homem. Este “olhar de carne” (PC, 430) que é o homem, e ao qual o outrora absoluto domínio da representação deve, doravante, sempre se referir, assume uma centralidade fundamental no espaço do saber moderno, “já que é ele quem fala, já que é visto residindo entre os animais [...], já que, enfim, [...] ele é necessariamente princípio e meio de toda produção” (PC, 431). Ocorre aqui uma estranha “duplicação” do homem: não obstante ser ele um elemento da ordem empírica, uma coisa entre as coisas, ele torna-se, também, ponto de confluência das análises de cunho transcendental – as positividades do trabalho, da vida e da linguagem nele convergem e encontram ali um espaço de articulação comum, bem como a possibilidade de se darem ao conhecimento. Esse é o “limiar de nossa modernidade” de que fala Foucault: a criação de “um duplo empírico-transcendental a que se chamou homem” (PC, 439). É no interior desta profunda transformação na ordem do saber que se alojam as chamadas ciências humanas. Na configuração antropológica do pensamento moderno, perguntar-se sobre o ser do homem mostra-se como um empreendimento infinito de “pensar o impensado” (PC, 451), ou seja, de relacionar o homem com o seu “Outro”, com as positividades que “ele contém de ponta a ponta, mas em que do mesmo modo se acha preso” (PC, 450). O aparecimento do homem no espaço do saber é, pois, contemporâneo da formulação dos campos transcendentais com os quais o homem se articula, mas que, não obstante, sempre lhe escapam. Eis, então, a estranha tarefa na qual as ciências humanas se veem imersas: estender os conteúdos dos saberes positivos sobre a produção, a linguagem e a vida para uma reflexão sobre o ser do homem – elas trilham o caminho de uma “analítica da finitude que mostra como pode o homem haver-se, no seu ser, com essas coisas que ele conhece e conhecer essas coisas que determinam, na positividade, seu modo de ser” (PC, 489). As humanidades, portanto, não são nada mais do que “ciências da reduplicação” (PC, 490): tratam-se de saberes que procedem mediante a transposição dos conteúdos empíricos para o campo transcendental (as relações sociais concretas dão razão para conceber a “sociedade” como uma região ontológica própria; as manifestações das psiques individuais originam uma noção transcendente da “natureza humana”; etc.). Vê-se por que caminhos avança a crítica foucaultiana das “quimeras dos novos humanismos” (PC, xxi), sempre ciosos de instalar os limites do pensamento nos conteúdos empíricos dados ao sujeito. Ora, o que essa reflexão “antropologizante” é incapaz de reconhecer – e que PC escancara magistralmente – é o absurdo implícito em tal raciocínio. Pois se, como sustenta Foucault, “antes do fim do século XVIII, o homem não existia” (PC, 425), então está claro que fundamentar os limites de direito do pensamento nesse ser que é, ele próprio, produto do pensar não pode derivar senão de uma ilusão ou de um grave malentendido. De fato, o homem, “[...] uma criatura recente que a demiurgia do saber fabricou com suas mãos há menos de 200 anos [...] envelheceu tão depressa que facilmente se imaginou que ele esperara na sombra, durante milênios, o momento de iluminação em que seria enfim conhecido.” (Ibid.) Nesse sentido, todo o escopo de PC parece apontar na direção do reconhecimento do homem não como fundamento último do saber, segundo a cartilha das análises antropologizantes; antes, trata-se aqui de reconhecê-lo como fruto de uma forma reflexiva que o pensamento moderno instaura, e cujos limites Foucault já entrevê no interior de certos saberes nos quais o homem não figura como a “imagem do pensamento” capaz de organizá-los (PC, 525): a psicanálise, a etnologia, a linguística e a literatura (PC, 517-35). Estes saberes dão uma espessura concreta ao apelo de Foucault para que enfim vejamos, no homem, nada mais do que o “nome de um dispositivo da episteme moderna” (Lebrun, 1985: 13); e como em todo dispositivo, o que se coloca aqui é menos uma entidade autorreferente e homogênea (o homem visto pela reflexão antropologizante) do que um compósito multilinear em que o esforço de desemaranhar suas linhas constitui o verdadeiro trabalho do pesquisador (Deleuze, 1996: 1). Por isso é que, ao final de PC, Foucault passa da denúncia filosófica do antropologismo para uma descrição crítica do conhecimento produzido no interior de saberes que, a despeito de se enraizarem no solo epistêmico moderno, conseguem subvertê-lo e desterritorializá-lo – são capazes, enfim, de pensar “no vazio do homem desaparecido” (PC, 473). Dentre esses saberes aos quais já me referi, Foucault concede especial importância a dois: a psicanálise e a etnologia2 . O primeiro porque trabalha com três figuras do pensamento – a Morte, o Desejo e a Lei – que não só deslocam a questão do ser do homem, mas também “designam as condições de possibilidade de todo saber” sobre ele (PC, 519); elas são, com efeito, “as próprias formas da finitude” (Ibid.) – o que indica o quão longe a psicanálise está do empreendimento que caracteriza o conjunto das ciências humanas, qual seja: a transposição dos conhecimentos positivos para o terreno da reflexão sobre o ser do homem (PC, 489) (aquilo que Foucault designa como uma “analítica da finitude”). Algo análogo ocorre com a etnologia, mas nesse caso, o que é posto em xeque é a outra ponta da episteme moderna que, ao lado da “analítica da finitude”, fornece sua especificidade e seu modo de ser característico: falo, é claro, das positividades do trabalho, da vida e da linguagem, essas categorias transcendentais que articulam o pensamento moderno. Ora, se a psicanálise dirige-se aos limites exteriores da finitude, àquilo que lhe dá seu contorno e que fornece as condições de possibilidade para a emergência de uma analítica desse domínio, a etnologia tem como alvo não as três positividades enquanto tais, mas antes visa definir como os coletivos humanos constroem suas relações entre estas esferas – como, enfim, as culturas definem sua singularidade e coerência próprias mediante a regulação e o entrecruzamento dos domínios biológico, produtivo e comunicacional (PC, 523). A psicanálise no campo da finitude e a etnologia no das positividades: o que se interroga nesses saberes, portanto, não é o “homem”, mas sim como é possível o nascimento de algo como um saber (ou saberes) sobre o homem (PC, 524). Interrogação, aliás, que tende a atingir os limites – tão estreitos – dessa imagem fugaz do pensamento ocidental; daí porque elas assumem o caráter de “contraciências” se comparadas com o conjunto das ciências humanas (PC, 525). A psicanálise e a etnologia, nas palavras de Foucault: “Não apenas [...] podem dispensar o conceito de homem, como ainda não podem passar por ele, pois se dirigem sempre ao que constitui seus limites exteriores. Pode-se dizer de ambas o que Lévi-Strauss dizia da etnologia: elas dissolvem o homem. [...] Em relação às “ciências humanas”, a psicanálise e a 2 Cabe frisar que aquilo que Foucault entende por “etnologia” não difere em absoluto daquele domínio das ciências sociais que, fora do mundo francófono, é mais conhecido pelo epíteto de antropologia. Para evitar, porém, possíveis confusões entre a antropologia como reflexão filosófica sobre o ser do homem – o antropologismo a que venho fazendo referência ao longo do texto – e a antropologia como um saber sobre os coletivos humanos, optei por manter, seguindo Foucault, o termo “etnologia” como uma forma de nomear o conhecimento antropológico ligado às ciências sociais. etnologia são antes “contraciências”; [...] elas as assumem no contrafluxo, reconduzem-nas a seu suporte epistemológico e não cessam de “desfazer” esse homem que, nas ciências humanas, faz e refaz sua positividade.” (PC, 525-6) O exercício reflexivo das “contraciências” é louvado por Foucault porque, por intermédio delas, a episteme moderna supera a si própria. Ao livrar-se de seus predicados antropológicos, os limites do pensamento são finalmente ampliados – pois o “homem”, para as “contraciências”, é menos uma entidade monolítica e estável ao qual toda reflexão deveria se reportar do que o resultado “de milhares e milhares de trabalhos que divergem ou se entrecruzam” (Lebrun, 1985: 22); esses processos através dos quais foi possível pensar o “homem” nos mais diversos domínios do saber e da cultura é que constituem o objeto de ciências tais como a psicanálise ou a etnologia. E, com efeito, no que tange à etnologia, aquilo que Foucault intuíra na obra de Claude Lévi-Strauss mostra-se ainda hoje – e talvez mais do que outrora – como um atributo fundamental da reflexão etnológica. Afinal, nem o homem, nem a sociedade, e nem sequer a cultura constituem o objeto por excelência desta disciplina. Ela não trata de entidades, mas só de relações. E, ainda nesse nível, a suspeição para consigo mesma é profunda: pois o que a etnologia faz é menos descrever as relações sociais em tal contexto do que registrar o que conta, lá, como uma relação social. Nesse sentido, é possível dizer que a etnologia: “[...] se distinga dos outros discursos sobre a socialidade humana não por dispor de uma doutrina particularmente sólida sobre a natureza das relações sociais, mas, ao contrário, por ter apenas uma vaga ideia inicial do que seja uma relação. Pois seu problema característico consiste menos em determinar quais são as relações sociais que constituem seu objeto, e muito mais em se perguntar o que seu objeto constitui como relação social [...]” (Viveiros de Castro, 2002: 122) Portanto, as entidades fechadas e homogêneas que geralmente figuram no horizonte analítico das ciências humanas e do antropologismo filosófico – a “natureza humana” da psicologia, a “sociedade” da sociologia3 , o “ser humano” da filosofia – passam longe da reflexão etnológica. De fato, é lá “onde o saber do homem trava” (PC, 528), em meio àquelas figuras que o tornam possível como objeto dado ao conhecimento, mas que, ao mesmo tempo, sempre o escapam – é neste terreno que a etnologia se instala; a noção de “homem”, como todo o resto – a sociedade, a cultura –, não passa de um feixe relacional tecido em meio às positividades do trabalho, da vida e da linguagem. Reconhecer este fato é o que permite à etnologia implodir a couraça essencialista que reveste tais conceitos, subtrair deles sua pretensão transcendental e expor, enfim, suas condições de possibilidade. Ao proceder dessa maneira, ao se recusar a lidar com essências e manter-se no plano das relações, a etnologia denuncia o caráter contingente disso que, no pensamento moderno, “os filósofos chamam, tão laconicamente, de Sujeito ou “homem”” (Lebrun, 1985: 22); com efeito, a etnologia é um saber que escancara o fato de que o “homem” – o nosso – está ausente do pensamento de outros coletivos humanos. 3 Mas aqui também já é possível entrever as reverberações de um paradigma relacional que rechaça partir das entidades autorreferentes (e transcendentais, diria Foucault) que sustentam a disposição epistêmica em que se alojam as ciências humanas. Tais ecos, por exemplo, estão mais do que consolidados nas formulações teóricas de Bruno Latour, autor que afirma de modo explícito sua rejeição à transcendência da “Sociedade”: “either there is society or there is sociology. You can’t have both at once [...]” (2005: 163). Parafraseando o que Eduardo Viveiros de Castro afirma a respeito da distinção entre os domínios humano e não humano no espaço mítico, é possível dizer que ali onde outras coisas são humanas, “o humano é toda uma outra coisa” (2007: 114); o “fim próximo” dessa “imagem do pensamento” que é o homem (PC, 536), vaticinado por Foucault na última página de PC, confirma-se atualmente nos esforços interpretativos de uma (contra)ciência que, ao perscrutar como o “humano” é construído em diferentes contextos mediante práticas de sentido muito distintas, dispensa, de saída, algo como “um conceito geral do homem” (PC, 525). O curioso, porém, é que a dispensa etnológica faz-se por razões alheias àquelas que regem o imperativo filosófico de rechaço ao antropologismo: pois se, por exemplo, o conceito de “homem” entre os ameríndios constrói um domínio humano que é menos definível por seus predicados biológicos do que pela posição de sujeito numa relação (posição esta que transcende os limites do “humano” tal como nós o compreendemos [Viveiros de Castro, 1996: 126]), então não se trata de ampliar os limites de direito do pensamento, de erigir novas figuras mediante as quais seja “de novo possível pensar” (PC, 473) – o que se apresenta ao conhecimento etnológico é, antes de tudo, um poderoso descentramento de nossas próprias categorias. A etnologia não necessita criar, por si mesma, novas imagens conceituais, pois ela já as tem em potência nos universos relacionais dos coletivos humanos sobre os quais se debruça. Na parte que lhe cabe no combate ao “sono antropológico” do pensamento moderno, a contraciência etnológica percorre o espaço intersticial das três positividades compilando a suma de suas conexões possíveis para, em seguida, demonstrar o que essa multiplicidade relacional implica na ordem do pensamento: outros conceitos, outras figuras do (etno)saber, outras filosofias. O trabalho que a reflexão filosófica faz “em casa” – servindo-se de sua própria tradição de pensamento, circunscrita pelo “a priori histórico” de sua época –, a etnologia busca empreender “no estrangeiro”. Escapando, enfim, aos perigos de um antropologismo que buscaria no homem “delimitar o que nele poderia haver de específico, de irredutível, de uniformemente válido em toda parte” (PC, 525), a etnologia mostra-se, contudo, “um poderoso instrumento filosófico, capaz de ampliar um pouco os horizontes tão etnocêntricos de nossa filosofia” (Viveiros de Castro, 2002: 127). Em seu interior ao menos, o homem de fato já desapareceu, “como, na orla do mar, um rosto de areia” (PC, 536). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DELEUZE, Gilles. (1966) “O Homem, uma Existência Duvidosa”. Le Nouvel Observateur, 1 de junho de 1966. Disponível em: (acesso: 15/04/12). _____________. (1996) “O que é um Dispositivo”. In: _________. O Mistério de Ariana. Lisboa: Ed. Vega. Disponível em: (acesso: 01/06/12). LATOUR, Bruno. (2005) Reassembling the Social: an Introduction to Actor-Network-Theory. Oxford: Oxford University Press. LEBRUN, Gérard. (1985) “Transgredir a Finitude”. In: RIBEIRO, Renato Janine (org.). Recordar Foucault. São Paulo: Brasiliense. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. (1996) “Os Pronomes Cosmológicos e o Perspectivismo Ameríndio”. Mana, 2(2): pp. 115-144. _________________________. (2002) “O Nativo Relativo”. Mana, 8(1): pp. 113-148. _________________________. (2007) “Filiação Intensiva e Aliança Demoníaca”. Novos Estudos  




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